segunda-feira, 4 de março de 2013

O SAPATEIRO DA RUA BRASIL


O cadeirante Angelim, além de sapateiro, era uma fabulosa “enciclopédia” humana... Fonte de nossas consultas didáticas. Ele, criterioso, não resolvia nossas tarefas escolares: ensinava-nos como fazer. Angelim foi, sem medo de errar, a pessoa da mais avançada cultura geral que conheci... Com a mesma propriedade com que resolvia uma simples “regra de três” interpretava as ideias de Gregório de Matos e discutia Mikhail Bakunin.

Tinha algumas manias o Angelim... Extremamente organizado e metódico, os calçados de sua oficina eram dispostos por tipo (botas com botas, botinas com botinas, sapatos com sapatos, etc.), tudo etiquetado e identificado. Após o almoço quando retornávamos da escola o observávamos cochilando, sobre sua cadeira, atrás de uma mesinha baixa cheia de tachinhas nas divisões, invariavelmente, com um livro caído sobre o peito.

Minha amizade com o, bem-humorado, “mestre” Angelim teve início em 72, quando pediu para que eu fosse, até a Farmácia Arruda, buscar seu coquetel de remédios... Acometido por uma paralisia congênita nos membros inferiores, cresceu sobre uma cadeira de rodas, pesadíssima, aliás. Aquela cadeira parecia uma extensão do seu corpo, tal era sua destreza com o equipamento...  Parecia levitar sobre rodas. 

Fumante inveterado, respirava com dificuldades, era  hipertenso e tinha problemas circulatórios. Sua condição orgânica nunca limitou o exercício de sua profissão; era o melhor sapateiro da cidade. 

Jamais reclamou de suas limitações, ao contrário, apoiava-se em Deus e afirmava que a sua vida já era um presente  do Criador. 

Produtivo, competente e independente era avesso ao uso dos benefícios sociais disponíveis... Era, terminantemente, contra aposentar-se com "saúde". 

A escola onde estudávamos (Virgínia Ramalho) realizava anualmente uma gincana inter-séries, chamada: “Gincana do Conhecimento”. Os desafios, além de algumas tarefas filantrópicas, era levar uma pessoa da comunidade para responder perguntas de cultura geral. Naquele ano convidamos o Angelim para nos ajudar. Reticente e desconfiado ele titubeou, mas, acabou por aceitar nosso convite (na verdade foi uma intimação!). Entre médicos, advogados e outros profissionais liberais, Angelim deu um verdadeiro “show” de conhecimento, acertando todas as 50 perguntas do questionário apresentado. Colocou 18 pontos de vantagem sobre o segundo colocado. E pensar que quando entramos na sala da prova, empurrando sua barulhenta cadeira de rodas, percebemos um quê de desprezo e olhares jocosos atirados na direção do nosso mestre.

No ano seguinte Angelim despediu-se da vida, serenamente, e da maneira que mais gostava: com um livro semiaberto no peito. Durante seu cochilo vespertino, “Seu” Angelim, seguiu a viagem definitiva... Deus o chamou, havia uma vaga de anjo no céu!

Hoje Angelim deve estar levitando no Paraíso... O único lugar onde, as cadeiras de rodas são desnecessárias, os sorrisos são doces e os olhares não discriminam, ao contrário, acalentam!


3 comentários:

  1. Mais uma fantástica passagem!!! A riqueza de palavras que usa para designar e descrever é fantástica. O eufemismo para morte foi digno de fascínio "vaga de anjo". Gosto muito de ler suas crônicas.

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  2. Angelim sapateiro,
    De quem vc foi lembrar Marreco! Esse era fodástico mesmo.
    Eu era péssimo em "Frações", ele fez um círculo, com giz, no balcão, dividiu em 8 partes feito uma pizza, e perguntou se eu comesse 3 fatias como ficaria a representação fracionária! KKK, Daí eu comecei entender a lógica dos números racionais! Era, seguramente, a figura mais brilhante que tivemos contato, realmente. Pode ter virado anjo mesmo>

    Reginaldo Minucci

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  3. Eu sou de um"pouquinho" antes e nessa mesma rua,na esquina com a Pedro de Toledo o sapateiro era sr. Júlio.Mas nem me atrevo a descreve-lo depois desta sua linda crônica.Tivemos em Ourinhos sapateiros maravilhosos,mas nenhum,creio,tão bom em matemática como o seu herói Angelim.

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