terça-feira, 28 de maio de 2013

NOTURNO. NÓS. CHUVA.

As trovoadas anunciaram que o traje da madrugada seria impermeável... Quase nenhuma lâmpada acesa para iluminar o caminho, função essa, incorporada pelos relâmpagos incessantes. A tração nas quatro chafurdava o barro e lambia o capim molhado nas margens de tudo que é lado.

Aos poucos fomos religando os alimentadores e, por consequência, apagando os lampiões do sertão platinense... Usamos proteções e rogamos proteção dos anjos que cumpriam sobreaviso... Vez em quando, feito o cantar do galo que risca a madrugada, os operadores indicavam o melhor caminho para os companheiros atolados em outros lamaçais... O melhor caminho para se chegar, aonde mesmo? A bateria do GPS já era!

Seguimos fazendo luz... Acendendo luzes... Pedindo Luz!

Naquela molhadeira toda foi inevitável o alagamento da minha retina... Cruzamos, no mesmo caminho lamacento, os primeiros veículos rurais à procura do leite das generosas tetas, para alimentar as bocas que ainda dormiam e, sonhavam por detrás de para-brisas embaçados e sonolentos.

O horizonte, mesmo envolto na escuridão, anuncia o amanhecer... Nós, com a certeza do dever cumprido, assistimos a luz do dia competir com a luz artificial que restabelecemos... Fantástica batalha campal... Os cabos rompidos ficaram por conta dos talibãs.

Esperávamos algum aplauso ou agradecimento - não faz mal, nossos coturnos são laváveis!

Apenas o bem-te-vi, ao perceber nosso retorno, mesmo com a garganta inflamada, gritou o mais alto que conseguiu:

- bem te vi!

Apagamos as luzes, ajeitamos a coberta e adormecemos, absolutamente em paz! O que era trovão, raios e barro virou canção de ninar...

Boa noite, Dia!



domingo, 26 de maio de 2013

TEM HORA QUE DÁ MEDO

Eu morro de medo quando o caixa eletrônico avisa: “Seu dinheiro será entregue em seguida”... Aquele barulho de lata batendo, dentro do equipamento, e a esperada ejeção das notas demora uma eternidade... Como insistem em rotular nossas neuras, acredito que eu esteja com “transtorno disfórico pré-saque”!

Meu stress não para por aí... Atendendo a um pedido de religação, escuto uma gritaria dentro da casa... Sai uma senhora correndo me puxando e pedindo:

- Corre moço, meu filho está com o diabo no corpo! Retruquei de pronto:

- Não posso minha senhora!  Fui expulso do curso de Exorcismo, em Machu Picchu, no final de 1979... Não tenho qualquer intimidade com sessões de desencapetamento - não tenho! Sugiro que a senhora procure esses pastores universais que estão dando sopa por aí... Na verdade seria melhor inscrever seu filho na bolsa “crack”... O demônio no corpo dele tem nome...

O desequilíbrio continuou... O Palmeiras vencia por 1 X 0 mas o jogo estava duro de doer... Mudando o canal me deparo com Novorizontino X América de Rio Preto... Desanimei e desliguei a tevê... Preferi ficar zapeando as nuvens, porém, nenhum cavaleiro alado ou extraterrestre para trocarmos uma ideia... Retornando para a sala, o filho informa que Bayern de Munique ganhou a Liga Europa contra o Borússia... Ué! Não era Novorizontino e América?

Russel Crowe, no site “TMZ”, revelou ter um irmão morando no interior do Paraná, que coincidência, eu tenho um irmão morando em Beverly Hills... Falando nisso, cadê minha fotografia ao lado do Lula com a dedicatória: “Meu amigo, João Neto, no Congresso Nacional, consigo garimpar, pelos menos, trezentos picaretas”! Garimpou mais, Senhor Presidente, muito mais!

O dia ensolarado, nesse norte paranaense, contrasta com o frio congelante da madrugada... Vendo um refrigerador  Frigidaire, duplex - sem selo Procel, por absoluta ociosidade... Aceito troca por aquecedor de ambiente ou cobertor em bom estado!

Vou ajustar meus telescópios... O carro da pamonha está passando, e o carro da pamonha passando é um evento, imperdível, que só ocorre a cada 300 anos – ou 300 picaretas - tenho dúvidas!

Por aqui sigo ouvindo Creedence...


quinta-feira, 16 de maio de 2013

O ALUNO DA ÚLTIMA CARTEIRA!


De todos os alunos do segundo ano colegial, na minha sala de aula, em 1976, o mais introspectivo, fechado e cara de mau, era o Carlos Thucher Breda.

Mudou-se para nossa cidade naquele ano... Morava com uma tia doente e trabalhava como descarregador de vagões (saqueiro), no pátio da Fepasa, apesar dos apenas 17 anos.

Com seu trabalho conseguia cobrir as despesas da sua casa, estudar e cuidar de uma tia acamada... Era um guerreiro – exemplo para todos!

A condição muscular adquirida (descarregando sacos de 60 quilos no trabalho) o confundia com um fisiculturista! 

Pelos fortes traços de descendência italiana e a dificuldade que tínhamos em pronunciar seu nome, o apelidamos “Stallone”... Sua semelhança com o personagem de “Rock, um Lutador” – filme lançado no ano anterior - era absurda!

Surpreendentemente Stallone era um aluno de boas notas e aplicado, porém, era uma “ilha” no ambiente estudantil. Sentava na última carteira, sempre isolado no canto da sala, viajava em seus olhares solitários e distantes. e olha que as "mina" pirava por causa do cara.

Numa aula de História, Professor Mávilo nos separou em duplas, para um trabalho de pesquisa sobre Madre Tereza de Calcutá... Acabei formando par com o Stallone. 

E naquele tempo não tinha essa molezinha de Google ou outro site de pesquisa, muito menos a Barsa - que não podíamos comprar.

Pensei comigo, e agora? Tô lascado, o sujeito nem conversa!

Puro engano... De cara disse que sua tia tinha um livro religioso com a biografia de Madre Tereza e me convidou pra fazer o trabalho em sua casa.

Trocamos várias ideias, o cara tinha um "papo cabeça"... Falamos de futebol, política, educação, música e dos compositores filosóficos nordestinos: Belchior, Zé Geraldo, Ednardo, Alceu, Raul, etc.. 

Quando falei do tamanho da minha família e lhe perguntei de sua mãe, aquele rapaz, escondido atrás de um monte de músculos desintegrou-se, tamanha emoção:

- Tenho inveja de você que tem pai, mãe e 15 irmãos... Eu só tenho minha tia Madalena, ela quem cuida de mim desde criança, agora eu tenho que cuidar dela, ela precisa de mim.

Apontando para a parede, em soluços, mirou numa fotografia em preto e branco e afirmou: 

- Aquela é minha mãe... Quando eu tinha 10 anos ela foi embora... Ao me deixar na casa da tia Madalena pediu para que titia ficasse comigo... Disse que um raquítico, feito eu, só iria atrapalhar sua vida! Por isso tenho que me manter forte - quando mamãe voltar espero que ela possa gostar de mim!




 

sábado, 11 de maio de 2013

CONSIDERAÇÕES CANINAS


Senhor Presidente da Cipa,

- Tomei conhecimento da análise do acidente, com lesão, ocorrida com o funcionário de sua empresa... Vocês concluíram que: “o motivo da lesão, na perna do funcionário, foi devido à mordida de um cão feroz”. Complementaram afirmando que o acidente poderia ter sido evitado se o dono tivesse amarrado o cão na corrente.

Pois bem, senhor presidente da Cipa: A pessoa que o senhor chama de “dono” na verdade é meu melhor amigo... E para falar de nossa amizade eu preciso te contar minha história:

Fiquei órfão muito cedo, perdi minha mãe atropelada numa dessas avenidas movimentadas... Avenidas criadas para diminuir os atropelos dos homens, além de atropelar caninos... Entre outros animais.

Fiquei alguns dias vagando pelas ruas - com fome e frio – todo machucado, sem forças, magro e rejeitado (quem iria querer um vira-latas?).

Numa noite não muito distante, percebo caminhando em minha direção, um senhor de semblante iluminado, carregando um olhar tão sincero, que não me contive e lhe abanei o rabo em sinal de empatia. Ele estalou os dedos e me chamou:  
     
- Vem Lobinho, vem que vou te dar um prato de comida!

Eu que nem nome tinha, naquele momento, passei a ser chamado de Lobinho - talvez por levar comigo alguns traços de huski siberiano – e ainda fui convidado para jantar! Após me alimentar (juro, estranhei o gosto daquela ração!), meu “melhor amigo” jogou alguns panos na varanda e falou carinhosamente:

- Você vai dormir aqui Lobinho, se quiser pode ficar morando com a gente!

Naquela noite, para não incomodar, não soltei um latido sequer e adormeci sonhando a paz do meu novo lar!

Aos poucos fui conhecendo todos os moradores da casa, inclusive as crianças com as quais brinco horas a fio. Amo essas pessoas e afirmo, sem medo de errar, sou muito feliz aqui!

Meu melhor amigo ou meu “dono”, como queira, senhor presidente da Cipa, construiu uma casinha só para mim,  com meu nome escrito na entrada e, ainda, de frente para o jardim para que eu possa observar as borboletas, beijando as flores, pela manhã.

 Meu melhor amigo jamais me prendeu em correntes, a não ser quando me leva pra passear ou paquerar uma cadelinha poodle que mora na casa da esquina (desculpe a expressão, mas tenho o maior “tesão” nela, senhor presidente!).

Em forma de gratidão não permito a entrada de pessoas estranhas aqui, defendo essa casa com unhas e dentes... Lembrando que seu funcionário é uma pessoa estranha para mim!

Sugiro (se é que aceita sugestão de um ser irracional) que mude o relatório do acidente e o conclua observando o seguinte: “O funcionário cometeu um ato inseguro ao adentrar uma propriedade particular sem verificar a presença de cão fiel”.

Nem o sofrimento de ter sido um cão sem dono e, ainda, a falta da minha mãe me tornou antissocial ou feroz, senhor cipeiro, mas sou fiel ao meu melhor amigo, isso eu sou!

Quando seu colaborador precisar adentrar nossa casa peça que, pelo menos, se anuncie. Se não o fizer ele será mordido novamente e sua Cipa terá que preencher outro relatório de acidentes.

Assinado: Lobinho