quinta-feira, 8 de março de 2012

BULLYING, TOMATES E ATITUDE





No pátio da escola reuníamos pra jogar nossa “pelada”. 

Num determinado dia, por causa de uma disputa de bola, discuti com outro aluno, iniciamos um bate-boca e quando virei de costas ele veio correndo, por trás, e me derrubou no chão. Confesso: “amarelei”. A turma do deixa disso nos separou e ele saiu prometendo que ia me esperar na saída, com a clássica frase: 

-Vou te pegar lá fora!

 Quando bateu o sinal, pouco antes do meio dia, eu saí pela porta da frente, me esquivando, e quando pensei que ele tivesse esquecido, lá estava o José, ou Zé Remela, esse era o apelido dele, junto com meia dúzia de outros moleques.

Apanhei muito naquele dia, só consegui escapar quando o pipoqueiro segurou-o e me mandou correr pra casa. 

Após aquele dia minha vida escolar virou uma tortura. Zé Remela não podia me ver e já me cercava, dando empurrões, petelecos, chutes, entre outras humilhações.

 Fisicamente eu não era tão menor que ele, mas, como eu já havia sucumbido, tinha medo, ou melhor, tinha pavor de seus olhos predadores. Esse meu medo travava qualquer reação de minha parte. Quando ouvia o nome do José eu tremia. 

Ir à escola passou a ser um tormento na minha vida. Eu tinha vergonha de contar, em casa,  o que estava acontecendo.  

 Perseguido e humilhado, comecei a cabular aulas. 

Num dia eu dava a desculpa de estar doente, em outro eu fingia ir pra escola e ficava escondido no campo do Seminário Josefino, até dar o horário de voltar pra casa.

 Pensei em conversar com o Padre Bernardino e conseguir uma vaga como seminarista. Mas, como justificar tal solicitação, eu, sem qualquer vocação sacerdotal?

 Cheguei a ficar uma semana inteira, por puro medo, sem ir à escola. Numa das minhas fugas, num dia chuvoso, lá mesmo no seminário, por conta e risco decidi que iria à aula no dia seguinte, enfrentaria o José, nem que eu morresse de tanto apanhar.

 Voltei para casa e minha mãe, coitada, juntou as últimas moedas, pedindo para que eu tirasse o uniforme e fosse comprar um quilo de tomates, no empório do japonês.

Quando eu retornava, em frente a horta da Dona Iraci, que era cercada por taquaras, ouvi a voz aterrorizante do Zé Remela: 
- Para aí Marreco (era meu apelido), o que é isso que está levando? Antes que eu respondesse ele bateu no saquinho de tomates. Uns rolaram pelo chão, outros fiquei segurando para não cair, enquanto seus amigos ficaram à espreita, rindo da situação.

Para mostrar poder ele emendou: 

- Não vai levar esses tomates não, vai enfiar todos nessas taquaras aí.

 Eu tremia e chorava de medo.  Comecei a fincar os tomates naquelas pontas de bambu, um a um.

 Quando eu cravava o quarto ou quinto tomate percebi que, no lugar da taquara, havia um pedaço de pau, solto e dependurado apenas por um prego. 
  
 Nesse momento, o medo se transformou em raiva... Arranquei, bruscamente, aquela madeira e virei com prego e tudo golpeando o lado direito do rosto do José. A pancada foi tão forte que chegou a estalar. Ele caiu, zonzo e vertendo em sangue. Antes que ele levantasse iniciei uma sessão de pauladas em sua cabeça, costas, barriga ou onde o pau pegasse. 

Ele gritava desesperado, seus amigos fugiram todos... Sua camiseta escolar, branca, parecia mais a camisa do América, de tão vermelha que ficou... Eu não parava de bater. Até que um senhor me segurou pelos braços e me tomou o porrete. Ele correu cambaleante, chorando e gritando de dor.

 Resgatei os tomates, todos, e os levei para casa. Fiquei sumido até anoitecer, esperando por uma surra de minha mãe (achava que daria até polícia). 

Para minha surpresa ninguém apareceu para reclamar o massacre. Fui dormir aliviado, feito um gladiador após uma vitória, com a certeza que na manhã seguinte eu retomaria, feliz, minhas aulas e minha liberdade.

 No outro dia cheguei cedo à escola, procurando pelo José, queria pegá-lo, de novo, antes do Hino Nacional. Não apareceu! 

Mas minha vingança ainda estava incompleta e não teve nenhum dos seus amigos que eu não tivesse acertado minhas contas... Pelo menos um soco na cara sobrou, para cada um deles. 

O terror da escola passou a ser eu. 

Para completar, José nunca mais apareceu. Fiquei sabendo, tempos depois, que foi morar com sua avó numa cidade vizinha.

 Eu cresci, aprendendo a me defender. Mais experiente me tornei pacífico, avesso à confusões. Agreguei grandes amigos durante minha caminhada. Aquele fato foi um divisor de águas para meu amadurecimento comportamental.

 Há cerca de um ano, em viagem à Santo Expedito, parei em um posto de combustível, perto de Presidente Prudente, para abastecer meu carro. 

O frentista me pediu as chaves e perguntou: 

- Enche o tanque?

Com o polegar fiz sinal de positivo. O frentista, ao abrir a tampa do tanque, ficou me olhando fixamente pelo espelho lateral,... Colocou a mangueira em posição de abastecimento mas não acionou o gatilho, entrando em um depósito ao lado da porta do atendimento. 

Esperei alguns minutos e vendo que ele não retornava fui falar com o gerente. Pedi para que ele mandasse alguém para completar meu abastecimento. Ele, mal educado, grita perguntando para o caixa:

- Tucura, cadê o Zé Rasgado?

 O outro respondeu: - Deve ter ido ao banheiro.

 O próprio gerente terminou o atendimento. 

Paguei a conta e fui até o depósito procurar pelo frentista. Dei de topa com o José (hoje Zé Rasgado), ele mesmo, Zé Remela: olhar medroso - cheio de cicatrizes no rosto e no pescoço - magro, vestígios de álcool nas pálpebras e  um semblante sofrido e assustado.

- Por que não abasteceu meu carro? Perguntei, com minha mão em posição de cumprimento.

Imóvel e evitando mirar meus olhos, ele respondeu: 

- Eu tenho medo de você, Marreco!

- Mas quase quarenta anos depois? esquece isso, retruquei.

 Ele fez um silêncio sepulcral, baixou a cabeça, e adentrou os fundos do depósito, desaparecendo por entre alguns tambores com óleo queimado.



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